Naveguem por este mundo sem validade!

quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

E tu, gostas de ir ver os patos?

- Trazes o cabelo oleoso.
- Hoje é quarta?
- Sim.
- Então vou lavá-lo.
Se soubesses o que eu faria se te pudesse levar comigo, dobrar-te-ia em quartos e depois em oitavos e depois em ínfimas partes para que pudesses caber dentro do meu bolso e levar-te a conhecer o mundo como mereces. Reduzir a existência a partículas e torná-las sobreviventes daquilo que não se gosta de lembrar. Lavá-las bem e voltar a aglomerá-las para construir novas memórias na tua vida. Era esse o meu desejo prepotente para ti. Mas tu não mo pediste. Que dirás quando te aperceberes de que me estou a meter de permeio entre a tua realidade e a minha fantasia?

- Foste passear?
- Fui ver os patos.
Imagino a tua alegria nesta experiência que repetes tantas vezes ao domingo. Alimenta-los a migalhas de pão à revelia do teu pai, que definitivamente, não gosta de os apreciar. Não tem paciência. É preciso paciência para ver patos, és tu quem o dizes. Eu acredito. Tens medo de cobras, mas é o medo de morrer que te congela o sorriso. Ainda sou muito nova, respondes-me. Pois és, confirmo-o com um aceno. E ter o poder de mudar o curso da tua vida? Nada, respondes-me com a mesma simplicidade que trazes desenhada nos teus olhos. Surpreende-me que aceites tudo tal como está, então volto a questionar-te. Precisou de 5 segundos e trouxe nova resposta. Queria apenas ter o cabelo liso. Pergunto porquê. Responde-me que o queria o comprido, tal como o meu. Volto a questionar e acrescenta que odeia ter frio na cabeça. 

- No pescoço?
- Sim.
- E tu, gostas de ir ver os patos? 

El pato y la muerte - Wolf Erlbruch. Barba Fiore Editora 2011





segunda-feira, 20 de janeiro de 2020

As asas são o cérebro dos sonhos.


Vens respirando ruidosamente. Trazes a turbulência na tua aura. Rodas os olhos no máximo que o movimento do teu pescoço te permite e vês-nos. Elogiamos o teu cabelo. Pareces o John Lennon, digo-te sorrindo. Retribuis. És amável, tal como imagino o teu interior.  A tua verdade é crua. As tuas mãos desprezam-te. Ausentes de qualquer função, tocam apenas as estrelas quando se desfazem em poeira e gás. Cobrem-te e agarram-te com tal força gravítica que não te consegues desprender dessa cadeira que te adormece. Mas nem sempre se tem a sorte de ser tocado por elas. As estrelas não morrem assim. A temperatura da tua pele acolhe o meu arrepio. A pele que te protege como uma mãe que engaiola o seu filho, numa espécie de ninho anti roubo. Pesquiso nos teus olhos onde pairam as tuas asas. Perdeste-as? Ou alguém alguma vez te falou da sua existência? Lamento que as desconheças. As asas são o cérebro dos sonhos. Nunca te disseram?  Lamento que te esqueçam de dizer as coisas importantes.
Não sou nem nunca serei uma estrela, mas posso sussurrar-te ao ouvido para que sintas o meu quente. Não ficarás brilhante nem serás mágico. Continuarás preso a essa cadeira, mas lembrar-te-ás mais vezes que existes, prometo.