O velho chegou arrastando as
pernas metálicas. Anda em quatro apoios, mas não é um cão. Não gosta de andar
depressa, mas gosta de mastigar lentamente os minutos debaixo da cama, esperando
que ninguém o deflagre. Não tem sorte. O velho é conhecido pela vilania e,
por isso, está mediante perigosa obediência a um binóculo fixo e diário. Mas o
velho já não se importa. Passa os dias esperando a ordem de deitar, levantar e
andar. Mesmo assim, a sua língua meliante mantém-se firme no ofício de
protestar. A língua não envelheceu como o resto do corpo. A língua é o seu
órgão do poder, o Terceiro Reich. São as suas ordens implacáveis que mantém o
corpo a funcionar.
Não dorme a sesta. “O sono é para
os preguiçosos”, entoa orgulhosamente para quem passa, como se de um hino se
tratasse. Recusa-se a obedecer a línguas que não conhecem o seu corpo. Entre os
tempos de deitar, levantar e andar a língua manda o hemisfério direito contar e
calcular.
“O Manel tomou 700 cafés a mais
durante este ano e eu já encontrei 930 palavras nesta sopa de letras e 93
sequências de dígitos.” Mostra-me o caderno com orgulho, como se mostrasse o
primeiro dente do seu filho ou o cheque do seu primeiro ordenado. Coisas do
tempo que levam tempo a ser contadas. Mas eu tenho tempo. Dou-lhe o meu tempo
sem mais nada lhe cobrar.
Conta-me que mendiga o amor,
tocando nos lábios mornos de um corpo presente, segurando-se à memória de um sorriso,
onde outrora existiram dentes. Toma conta deste amor, dividindo o espaço à
noite com quem partilha o mesmo oxigénio. Um ciclo de 60 anos que, em breve,
poderá ter um fim terreno.
Não gosta de regras. Inveja a independência,
mas resigna-se à relatividade da sua. Ainda controla os seus braços e não
percebe porque não lhe deixam fazer a barba. “Temos medo que o senhor se corte”.
O medo baliza pequenos cortes na camada mais profunda do seu ser. Quem ganhou
por direito o poder de os infligir?
As convicções dos outros
comprometem a sua liberdade. A liberdade do velho. Ele diz: “elas são velhacas”.
Elas chocam-se e embutem-se de demagogia: “é um pecado capital querer ser livre
em forma exponencial à idade”.
Mas “elas” ainda não perceberam
que ele apenas queria fazer a barba sozinho. Fazer a barba com as suas próprias mãos.
Mãos que ainda conseguem segurar um lápis e produzir traços caçando palavras.
Um velho não é um cão. |
Uau, que texto!
ResponderEliminarObrigada Andreia! Beijinho 😘
EliminarNão, um velho não é um cão. Só se for um cão velho que já ninguém quer adotar.
ResponderEliminarDantes um velho era um ancião respeitado, um maná de sabedoria acumulada.
Hoje um velho é um velho, um estorvo, um empecilho na vida daqueles a quem e por quem deu a vida.
Por isso é que quero morrer de repente, ou com tempo e força para decidir a morte, como sempre decidi a vida: como, quando e onde eu quiser.
Zé como te entendo e respeito. Um abraço!
EliminarHistória é muito interessante para ler e a aquarela é sublime
ResponderEliminarabraços
Obrigada Alfacinha! Beijinho 😘
EliminarDas tuas palavras que sempre adoro, estas que juntaste, cruas, nuas e cansadas, neste pedaço de tempo demorado, são do melhor que já te conheci. E conheço bem.
ResponderEliminarSabes... apeteceu-me continuar à caça de palavras depois do último ponto final. Apeteceu-me ir para a página seguinte e palmilhar as pupilas e sinapses até ao final do capítulo.
Quem sabe um dia... beijinho enorme 😘
EliminarAdorei este texto!
ResponderEliminarBeijinho
Este texto fez-me recordar o meu avô :)
ResponderEliminarbeijinho!
vou seguir ;)
O meu avô também. Beijinho!
EliminarBom texto
ResponderEliminarSou velho
mas nele não me revejo
Eu sou mesmo cão
mordo e ladro
apenas não abano o rabo
Ah, e gosto de festas
muitas!
Caro Rogério, quem não gosta de festas? :)
EliminarAbraço!
O abandono e o desprezo a que são votados muitos idosos é simplesmente revoltante.
ResponderEliminarBoa semana
Pedro, é triste e difícil.
EliminarBoa semana para ti também!
Seria bom conseguirmos uma sociedade que se pudesse envelhecer com dignidade
ResponderEliminarum beijinho e uma boa semana
Sim. Pena que este seja um problema tão presente.
EliminarBeijinho e boa semana!