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sexta-feira, 21 de junho de 2019

Um velho não é um cão.


O velho chegou arrastando as pernas metálicas. Anda em quatro apoios, mas não é um cão. Não gosta de andar depressa, mas gosta de mastigar lentamente os minutos debaixo da cama, esperando que ninguém o deflagre. Não tem sorte. O velho é conhecido pela vilania e, por isso, está mediante perigosa obediência a um binóculo fixo e diário. Mas o velho já não se importa. Passa os dias esperando a ordem de deitar, levantar e andar. Mesmo assim, a sua língua meliante mantém-se firme no ofício de protestar. A língua não envelheceu como o resto do corpo. A língua é o seu órgão do poder, o Terceiro Reich. São as suas ordens implacáveis que mantém o corpo a funcionar.

Não dorme a sesta. “O sono é para os preguiçosos”, entoa orgulhosamente para quem passa, como se de um hino se tratasse. Recusa-se a obedecer a línguas que não conhecem o seu corpo. Entre os tempos de deitar, levantar e andar a língua manda o hemisfério direito contar e calcular.
“O Manel tomou 700 cafés a mais durante este ano e eu já encontrei 930 palavras nesta sopa de letras e 93 sequências de dígitos.” Mostra-me o caderno com orgulho, como se mostrasse o primeiro dente do seu filho ou o cheque do seu primeiro ordenado. Coisas do tempo que levam tempo a ser contadas. Mas eu tenho tempo. Dou-lhe o meu tempo sem mais nada lhe cobrar.

Conta-me que mendiga o amor, tocando nos lábios mornos de um corpo presente, segurando-se à memória de um sorriso, onde outrora existiram dentes. Toma conta deste amor, dividindo o espaço à noite com quem partilha o mesmo oxigénio. Um ciclo de 60 anos que, em breve, poderá ter um fim terreno.

Não gosta de regras. Inveja a independência, mas resigna-se à relatividade da sua. Ainda controla os seus braços e não percebe porque não lhe deixam fazer a barba. “Temos medo que o senhor se corte”. O medo baliza pequenos cortes na camada mais profunda do seu ser. Quem ganhou por direito o poder de os infligir?
As convicções dos outros comprometem a sua liberdade. A liberdade do velho. Ele diz: “elas são velhacas”. Elas chocam-se e embutem-se de demagogia: “é um pecado capital querer ser livre em forma exponencial à idade”.
Mas “elas” ainda não perceberam que ele apenas queria fazer a barba sozinho. Fazer a barba com as suas próprias mãos. Mãos que ainda conseguem segurar um lápis e produzir traços caçando palavras.


Um velho não é um cão.

17 comentários:

  1. Não, um velho não é um cão. Só se for um cão velho que já ninguém quer adotar.
    Dantes um velho era um ancião respeitado, um maná de sabedoria acumulada.
    Hoje um velho é um velho, um estorvo, um empecilho na vida daqueles a quem e por quem deu a vida.
    Por isso é que quero morrer de repente, ou com tempo e força para decidir a morte, como sempre decidi a vida: como, quando e onde eu quiser.

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    1. Zé como te entendo e respeito. Um abraço!

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  2. História é muito interessante para ler e a aquarela é sublime
    abraços

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  3. Das tuas palavras que sempre adoro, estas que juntaste, cruas, nuas e cansadas, neste pedaço de tempo demorado, são do melhor que já te conheci. E conheço bem.
    Sabes... apeteceu-me continuar à caça de palavras depois do último ponto final. Apeteceu-me ir para a página seguinte e palmilhar as pupilas e sinapses até ao final do capítulo.

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  4. Adorei este texto!
    Beijinho

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  5. Este texto fez-me recordar o meu avô :)

    beijinho!

    vou seguir ;)

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  6. Bom texto

    Sou velho
    mas nele não me revejo
    Eu sou mesmo cão
    mordo e ladro
    apenas não abano o rabo

    Ah, e gosto de festas
    muitas!

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    1. Caro Rogério, quem não gosta de festas? :)
      Abraço!

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  7. O abandono e o desprezo a que são votados muitos idosos é simplesmente revoltante.
    Boa semana

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    1. Pedro, é triste e difícil.
      Boa semana para ti também!

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  8. Seria bom conseguirmos uma sociedade que se pudesse envelhecer com dignidade
    um beijinho e uma boa semana

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    1. Sim. Pena que este seja um problema tão presente.
      Beijinho e boa semana!

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